por Daniel Gualberto da Silva

 

 

Nos turbulentos primeiros meses da Política Externa do Governo Trump, a gestão recém-empossada demonstrou interesse, como parte de seus esforços direcionados a países de população muçulmana, em designar como uma Organização Terrorista Estrangeira (FTO)[1] a Irmandade Muçulmana. Apesar de inicialmente abandonada, o encontro do início de abril deste ano entre Donald Trump e Abdel Fattah el-Sisi, presidente egípcio, parece ter trazido de volta essa ideia à atenção da Casa Branca (THE NEW YORK TIMES, 2019). Tal proposta, entretanto, ainda conta com a resistência de alguns órgãos e oficiais de governo, além de parecer flertar com o passado recente norte-americano de políticas antiterror inapropriadas, pouco eficazes e cujas consequências aprofundaram o problema que se visava resolver.

 

Um dos primeiros problemas que se apresentam ao tentar classificar a Irmandade Muçulmana como uma FTO é a própria estrutura dela. Fundada no Egito de 1928 e advogando por uma sociedade islâmica moderna baseada no Corão e na Hadiz para se contrapor aos colonizadores e se equiparar ao ocidente (ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, 2019), a Irmandade e suas ideias rapidamente se espalharam pelo mundo islâmico. Assim, a Irmandade não conta hoje com uma estrutura centralizada e são numerosos os movimentos que se dizem inspirados pelo movimento original. Essa fragmentação é um obstáculo para os objetivos de Trump, visto que, mesmo que algumas células pratiquem atos terroristas, a Irmandade Muçulmana egípcia não participa de atividades que ameacem os interesses estadunidenses (KIRKPATRICK, 2019). A ameaça a esses interesses é, por sua vez, condição própria para que se classifique um grupo como uma FTO (DEPARTMENT OF STATE, 2019). É importante notar que braços armados inspirados pela Irmandade ou dissidentes dela – como o Hamas, Hasm e o Liwa al-Thawra -, por sua vez, já foram designados como terroristas pelos governos norte-americanos (KIRKPATRICK, 2019).

 

Se o sistema parece funcionar normalmente, com as organizações violentas e pacíficas classificadas conforme suas naturezas, vale a pena se perguntar por que a administração atual busca atribuir o status de FTO à Irmandade. À primeira vista, o esforço atual aparenta ser um gesto de agrado a el-Sisi – outro líder autoritário com quem Trump quer nutrir laços próximos. Essa aproximação se encaixa, além disso, em uma estratégia política da presidência Trump: o distanciamento das políticas de Obama; el-Sisi tomou o poder através de um golpe que derrubou Mohamed Morsi, antigo líder da Irmandade Muçulmana cujo breve governo manteve contato próximo com a administração do democrata (KIRKPATRICK, 2019). Outra possível motivação é o desejo de fortalecer a amizade com o governo Saudita, contrário à Irmandade, e de reafirmar a imagem linha-dura de Trump para com certos segmentos da religião islâmica.

 

Para além das motivações, é importante levantar possíveis consequências caso Trump tenha êxito. E é nesse esforço de prospecção que se nota como o caso atual remete a erros recentes da política externa americana. Levando em conta as ações da Guerra ao Terror e, especificamente, da invasão ao Iraque, os EUA parecem repetir seus erros ao atacar mais uma ameaça duvidosa, utilizando, dessa vez, outra variante do poder: sua capacidade econômica e, por meio da influência, de seus aliados. Andrew Moran lembra que não se derrota o terrorismo apenas por meio do hard power (2015). Os EUA do Século XXI provam isso, mas Trump parece disposto a tentar novamente. Além disso, o efetivo regime de designação de FTOs, que envolve, além dos EUA, as Nações Unidas e a União Europeia, pode perder credibilidade e força (BENJAMIN; BLAZAKIS, 2019), ecoando o que ocorreu com o Sistema ONU no processo do Iraque.

 

Além de enfraquecer um de seus instrumentos, os EUA podem alienar aliados e fortalecer seu alvo: a Irmandade Muçulmana e a ideia que ela representa. Turquia e Kuwait são somente alguns dos aliados norte-americanos que apoiam a Irmandade e que não responderiam bem à ação de Trump, e, além disso, uma classificação ilegítima aumentaria a notoriedade da Irmandade e de suas crenças, como ocorreu com al-Qaeda (BENJAMIN; BLAZAKIS, 2019). Agora, ainda mais do que em 2003, é evidente que os Estados Unidos terão saldo negativo caso a ação se concretize: a ameaça é duvidosa e atores importantes se veem em lados opostos da disputa. Cabe saber se Trump cederá ao pragmatismo seguro ou aos hábitos da sua administração.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BENJAMIN, D.; BLAZAKIS, J. The Muslim Brotherhood Is Not a Terrorist Organization. Foreign Affairs, maio 2019. Disponível em: <https://www.foreignaffairs.com/articles/2019-05-17/muslim-brotherhood-not-terrorist-organization> Acesso em:  4. jun 2019.

DEPARTMENT OF STATE. Foreign Terrorist Organizations. Washington DC, EUA. Disponível em: <https://www.state.gov/foreign-terrorist-organizations/> Acesso em: 4 jun. 2019

ENCYCLOPEDIA BRITANNICA. Muslim brotherhood. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/muslim-brotherhood>. Acesso em: 04 jun. 2019.

KIRKPATRICK, David. Trump Considers Them Terrorists, but Some Are allies. The New York Times, maio 2019. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2019/05/10/world/middleeast/trump-muslim-brotherhood.html>, Acesso em: 4. jun 2019.

MORAN, A. Terrorism. In HOUGH, P.; MALIK, S.; MORAN, A.; PILBEAM, B. International Security Studies: theory and practice. Routledge: London and New York, 2015.

THE NEW YORK TIMES. Trump pushes to designate muslim brotherhood a terrorist group. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2019/04/30/us/politics/trump-muslim-brotherhood.html?module=inline>. Acesso em: 03 jun. 2019.

 

[1] Sigla do inglês Foreign Terrorist Organization