Por Lucas Serra, Matheus Teles e Victor Rondon[1]

 

 

INTRODUÇÃO

 

Na África Ocidental, estão presentes inúmeros as circunstâncias portadoras de importante potencial de conflitividade e que, por consequência, afetam a condição de estabilidade do entorno estratégico brasileiro. São notórios os fatores de instabilidade recentes observados em Burkina Faso, Mali e Nigéria, abrangendo duas grandes regiões de destaque: o Sahel e a Bacia do Lago Chade. De modo geral, a insegurança observada nestes espaços está ligada a regimes políticos pouco eficientes e, sobretudo, à atuação de grupos terroristas. Como estes possuem vínculos transnacionais, a intensificação e a dispersão das tensões são possíveis, tornando o jihadismo um tema relevante na região, sobretudo nos três países citados, com importantes impactos potenciais para a estabilidade no entorno estratégico do Brasil.

 

 

BURKINA FASO

 

Desde dezembro de 2018, o governo local declarou estado de emergência em 14 das 45 províncias do país em virtude de processos violentos associados a duas vertentes não necessariamente articuladas: de um lado, os conflitos intercomunitários em que atuam forças paramilitares; de outro, os atentados perpetrados por movimentos jihadistas como o Estado Islâmico e a Al-Qaeda (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2019b). Estes grupos, embora atuando também de modo independente, já controlam diversos espaços ao norte e leste do país, e promovem frequentes atentados com bombas em todo o território. Mais de mil escolas, seus principais alvos, foram atacadas desde o início de 2018 (WORLD POLITICS REVIEW, 2019).

 

Face a isso, dissidentes do Exército formaram grupos paramilitares com a intenção presumida de responder a esses ataques. Contudo, o advento do paramilitarismo e a ação das forças armadas não se prendem exclusivamente a motivações contra terroristas: grande parte das vezes, as ações são motivadas por razões étnicas. Segundo a Human Rights Watch, 116 pessoas da etnia fula foram assassinadas pelas forças militares na região Arbinda entre o início de 2018 e fevereiro de 2019. A organização informa, ainda, que “os vilarejos vivem com medo pois ambos os lados, jihadistas e militares, demonstraram total desrespeito pela vida humana”; ainda, segundo a ONU, estima-se que os conflitos – sejam eles envolvendo extremistas islâmicos, grupos paramilitares ou os dois – tenham originado um movimento emigratório de mais de 100 mil pessoas em direção ao Mali, mas também para países como Líbia e Argélia, havendo movimentos em busca do Mar Mediterrâneo (WORLD POLITICS REVIEW, 2019).

 

Frente estas acusações, as forças armadas de Burkina Faso reiteraram que estão comprometidas com os direitos humanos, alegando haver investigações internas para apurar o caso citado. Apesar disso, após o pronunciamento, no dia 11 de março, o Exército realizou uma operação num pequeno vilarejo que resultou em 146 mortes, havendo acusações de 60 delas serem de civis, e muitas execuções sumárias em frente aos familiares (REUTERS, 2019a).

 

 

MALI

 

O maior dos protestos que assolou o Mali nos últimos anos aconteceu na capital, Bamako, no último dia 6 de abril, evidenciando, além de conflitos intercomunitários, embates entre tuaregues e governo central e redes criminosas transnacionais, o jihadismo como fator significativo na insegurança do país. Os manifestantes expressaram descontentamento com a atuação falha das forças estatais e dos peacekeepers da ONU na contenção da instabilidade crescente gerada pela confluência destes movimentos. O motivo central dos referidos protestos foi o massacre perpetrado à etnia fula.

 

A pequena vila de -Peul na região central do país sofreu, no dia 25 de abril, um ataque que deixou 160 mortos (EL PAÍS, 2019). O ato foi perpetrado, segundo as Forças Armadas malianas, por um grupo de autodefesa pertencentes à etnia dogon. A principal razão morticínio é o fato de o grupo considerar os fulas cúmplices do jihadismo, fator que intensifica os conflitos intercomunitários no centro do Mali. Assim, os assassinatos foram uma espécie de retaliação a um ataque sofrido pelo Exército maliano dois dias antes, e que foi reivindicado por um braço da Al-Qaeda no Mali[2].

 

A situação se agrava porque as forças militares da Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização no Mali[3] (MINUSMA) encontram dificuldades de atuação - o que se expressa no fato de se fazerem presentes somente em áreas restritas do país. Associado a isso, as fronteiras com Níger e Burkina Faso — esta última, fechada e em estado de emergência desde dezembro de 2018 — são regiões de tensões iminentes em razão da atuação de grupos terroristas. Dessa forma, a movimentação das tropas da Operação Barkhane[4], força militar francesa atuante na região do G5 do Sahel[5], busca pressionar os grupos que atuam na região próxima da tríplice fronteira entre Burkina Faso, Mali e Níger.

 

Por fim, há fortes indícios de que a atuação dos movimentos jihadistas é pautada na exploração dos conflitos e das discriminações já existentes entre as comunidades. Assim, desacordos por recursos escassos da região, marginalização estatal – ou presença autoritária e repressiva, quando há –, circulação descontrolada de armas e a existências de diversos movimentos (rebeldes, guerrilheiros e jihadistas) dificultam a resolução dos conflitos no Mali, mantendo-o como foco central de instabilidade na região do Sahel.

 

 

NIGÉRIA

 

O caso da Nigéria é caracterizado por risco constante de conflito desde o início do ano (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2019). Além de conflitos que envolvem fazendeiros e pastores, a insistência do movimento separatista da região de Biafra, o aumento da violência no estado de Zamfara, a presença do grupo jihadista Boko Haram no nordeste do país são ameaças constantes à segurança. Atuando também em Chade, Níger e Camarões e com picos de ação entre 2014 e 2015, o grupo foi, desde o seu surgimento, responsável pela morte de mais de 30 mil pessoas e por mais de 2 milhões de deslocados na Bacia do Lago Chade.

 

Apesar de enfraquecido, o Boko Haram ainda é o principal fator desestabilizador no nordeste da Nigéria. Supostos ataques jihadistas deixaram mais de 50 mortos no final de semana das eleições presidenciais, em fevereiro (G1, 2019). Além disso, mais de 10 mil moradores de Jakana, no estado de Borno, foram realocados pelo Exército nigeriano como parte de uma missão de busca por insurgentes do Boko Haram na região (REUTERS, 2019d). Já neste mês, o Estado Islâmico alegou, através do Boko Haram[6], ter matado 13 soldados nigerianos e 5 soldados de uma força multilateral enviada para combatê-lo (Idem, 2019c).

 

Desde a primeira eleição de Muhammadu Buhari, em 2015, o Boko Haram vem perdendo territórios no nordeste da Nigéria e diminuindo sua ação por conta da maior efetividade do Exército no combate ao terrorismo, mas sua presença ainda é um problema de segurança evidente. A reeleição de Buhari é um ponto-chave nesse quesito, uma vez que suas promessas de campanha, tanto em 2015 quanto em 2019, envolviam uma luta incisiva contra o extremismo islâmico.

 

 

Implicações

 

Por se tratar de região importante para o Brasil, os fatores de instabilidade presentes na África Ocidental requerem atenção particular, principalmente pela incapacidade dos governos locais em conter os grupos jihadistas, o que suscita a possibilidade de transbordamento do terrorismo para regiões além do Sahel e da Bacia do Lago Chade, modificando as condições securitárias no entorno estratégico brasileiro. Recentemente, o Estado Islâmico reivindicou o primeiro ataque na República Democrática do Congo (REUTERS, 2019b), e países vizinhos aos do Sahel, como Costa do Marfim – que sofreu um ataque terrorista em 2016 –, Gana, Togo e Benin estão fortalecendo a segurança nas fronteiras ao norte após a escalada da violência relacionada ao jihadismo desde o início do ano (BLOOMBERG, 2019).

 

Por sua configuração transnacional, o jihadismo tem enorme capacidade de difusão, e a distância – tanto geográfica quanto ideológico-religiosa – do Brasil em relação aos grandes centros islâmicos do mundo não o torna imune a suas influências. Vale ressaltar a presença de apoiadores do grupo terrorista Hezbollah na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai desde o início do século (G1, 2018). Recentemente, em 2016, a Operação Hashtag desmobilizou uma rede extremista islâmica composta por brasileiros, sob suspeitas de planejamento de possíveis atentados terroristas durante os Jogos Olímpicos daquele ano, evidenciando a capacidade do Estado Islâmico em atingir e organizar células ao redor do mundo (A.; O.; S., 2017). Apesar de criticada, entre diversos fatores, por ter obtido sucesso contra um grupo tido como “amador”, o caso da Operação Hashtag – e a presença do Hezbollah – demonstra que o Brasil está suscetível à difusão de células terroristas transnacionais, havendo, de fato, a necessidade de investigar relações com situações semelhantes no entorno estratégico.

 

A atenção em relação ao extremismo islâmico não se restringe apenas ao Brasil, mas também aos países vizinhos, uma vez que, apesar de não haver relação direta entre islamismo e terrorismo, o número de muçulmanos na América Latina – cerca de seis milhões – tende a ser um facilitador de ideais extremistas relacionados à religião. A inteligência russa, recentemente, afirmou a existência de campos de treinamentos e esconderijos de membros do Estado Islâmico e da Al Qaeda na América Latina (SPUTNIK, 2019), evidenciando a difusão do jihadismo na região, apesar de não citar quais os países de atuação desses grupos.

 

 

[1] Alunos de Graduação em Relações Internacionais na Universidade de Brasília

[2] No Mali, há a presença de inúmeros grupos jihadistas. A Al-Qaeda possui vínculos para atuação na região desde 2002 com o Grupo Salafista para a Pregação e o Combate. A partir de membros dissidentes desse grupo em 2007, surgiu Al Qaeda no Magrebe Islâmico que se consolidou como uma força atuante da Al-Qaeda no país (FOLHA DE S. PAULO, 2007).

[3] MINUSMA, isto é, a Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização do Mali, é uma missão de paz no Mali estabelecida em 2013. A resolução 2423 de 28 de junho de 2018, por uma votação aprovada com unanimidade no Conselho de Segurança, estendeu a sua permanência no país e é sustentada pelo Capítulo VII da Carta das Nações Unidas (MINUSMA, 2019b) e hoje conta com aproximadamente 16 mil em campo (Idem, 2019a).

[4] Estabelecida em 2014 para realizar missões de contraterrorismo na região do Sahel, atuando em conjunto com os países do G5 e MINUSMA.

[5] Criado em 2014, O G5 do Sahel é uma organização regional de cooperação regional que reúne cinco países, Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger, para questões de fortalecimento do desenvolvimento e da segurança dos integrantes que enfrentam problemas semelhantes entre eles, conflitos com grupos terroristas jihadistas.

[6] O Boko Haram é composto por duas facções, sendo apenas uma delas vinculada ao Estado Islâmico, denominada Província do Estado Islâmico na África Ocidental desde 2015.

 

 

Referências

 

ÁFRICA NEWS. French anti-Jihadist force opens new base in Mali. 02 abr. 2019. Disponível em: <https://www.africanews.com/2019/04/02/french-anti-jihadist-force-opens-new-base-in-mali/>. Acesso em 24 abr. 2019.

 

A., Thiago; O. Augusto; S. Allan. O processo de radicalização e a ameaça terrorista no contexto brasileiro a partir da Operação Hashtag. Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n.12, dez. 2017.

 

BLOOMBERG. Jihadist threat prompts Ivory Coast, Ghana to raise guard. 8 mai. 2019. Disponível em: <https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-05-09/nearing-jihadist-threat-prompts-ivory-coast-ghana-to-lift-guard>. Acesso em 12 mai. 2019.

 

EL PAÍS. Asesinados al menos 135 pastores peul en una posible matanza étnica en Mali. 23 mar. 2019. Disponível em: <https://elpais.com/internacional/2019/03/23/actualidad/1553362878_799592.html>. Acesso em 24 abr. 2019.

 

______. La guerra invisible del Sahel: un 46% más de muertes en solo un año. 02 abr. 2019. Disponível em: <https://elpais.com/internacional/2019/03/25/actualidad/1553513329_597100.html>. Acesso em 24 abr. 2019.

 

FOLHA DE S. PAULO. Al Qaeda do Magreb surgiu em janeiro. 12 de abr. 2007. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1204200705.htm>. Acesso em: 08 mar. 2019.

 

INTERNATIONAL CRISIS GROUP. CrisisWatch. 2019a. Disponível em: <https://www.crisisgroup.org/crisiswatch>. Acesso em 24 abr. 2019.

 

______. Tackling Burkina Faso’s Insurgencies and Unrest. 28 jan. 2019b. Disponível em: <https://www.crisisgroup.org/africa/sahel/burkina-faso/tackling-burkina-fasos-insurgencies-and-unrest>. Acesso em 24 abr. 2019.

 

G1. Ataques jihadistas marcam início das eleições presidenciais na Nigéria. 23 fev. 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/02/23/ataques-jihadistas-marcam-inicio-das-eleicoes-presidenciais-na-nigeria.ghtml>. Acesso em 24 abr. 2019.

 

______. Libanês suspeito de financiar grupos terroristas é preso pela PF em Foz do Iguaçu. 21 set. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2018/09/21/libanes-suspeito-de-financiar-grupos-terroristas-e-preso-em-foz-do-iguacu.ghtml>. Acesso em 8 mai. 2019.

 

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______. The Security Council unanimously approved Resolution 2423 on 28 June 2018, renewing the mandate of MINUSMA for another year. 2019b. Disponível em: <https://minusma.unmissions.org/en/mandate-0>.  Acesso em 8 mai. 2019.

 

 

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WORLD POLITICS REVIEW. How State Security Forces Are Fueling Instability in Burkina Faso. 22 mar. 2019. Disponível em: < https://www.worldpoliticsreview.com/trend-lines/27688/how-state-security-forces-are-fueling-instability-in-burkina-faso>. Acesso em 24 abr. 2019.